É penta
 



Contos

É penta

Carol Bortolo


Meu irmão é dois anos mais novo. Ele chegou num dezembro de sol, entrou pela porta da frente e pisoteou o meu reinado de princesa da família. Eu comandava todos os esquemas e, de repente, eu tive que aprender a dividir tudo 50% para mim e 50% para ele.

Os primeiros anos da infância foram de muita briga, gritos, dedos quebrados de propósito na porta de ferro da cozinha e muito castigo dos meus pais para ver se a gente repensava nossas ações. A gente repensava sempre e voltávamos do castigo com ideias ainda mais mirabolantes para destruir a casa e nosso maior inimigo: um ao outro.

Quando a adolescência bateu, minha mãe separou a gente de quarto e, no mesmo segundo, estabelecemos um elo de paz e irmandade que nunca mais se quebrou. Viramos amigos, companheiros, apoiadores dos projetos um do outro e silenciosamente cúmplices do que quer que fosse. Começamos a ter amigos no bairro e, filhos da Zona Leste nos anos 90, tínhamos ainda a liberdade de brincar na rua sem grandes medos de violência. Já era perigoso? Até era, mas a ZL cuidava dos seus.

Minha rua era composta, basicamente, por meninos. De menina ali, só tinha eu e a Vivi, minha vizinha da rua de trás e grande companheira de infância, adolescência e começo de vida adulta. Vivi era meu próprio símbolo de paz e estabilidade emocional, algo que eu claramente já não tinha desde o berço. A gente passava horas na calçada da casa dela, analisando a nossa vida e a de quem passava por ali. As outras meninas na faixa dos 15 anos já estavam todas grávidas ou com filhos nos braços, e a gente continuava na santa calmaria do nosso mundinho de colegial, de camiseta e shorts, sonhando com um futuro diferente do delas.

Enquanto eu e a Vivi fortalecíamos nossa amizade naquela calçada, meu irmão e os meninos da rua fortaleciam a deles através das muitas horas empinando pipa, apostando corrida de carrinho de rolimã e acabando com a sola dos chinelos, ou só sentados no banco da praça fazendo o que faziam de melhor: piadas uns dos outros. Não é à toa que Thiago Ventura, sucesso de stand up, conquistou tanta gente contando sua versão da periferia do Taboão. Tanto lá como cá como em qualquer quebrada, o humor já nasce na alma.

Tinha dias que só de olhar para a praça e ver quem estava sentado, eu já dava risada sozinha. A capacidade de zoar o próximo era um dom tão enraizado naquela galera que eu desconfio que, em todos aqueles anos juntos, nunca ouvi eles falarem uma frase séria. O favorito deles era o Tomate, um dos mais novinhos e que ainda conservava a bondade da inocência. Eles amavam a inocência dele para paquerar uma menina, para se vestir para ir à matinê da Broadway na Barra Funda, para reprovar mais um ano no colégio. Tomate era tão bonzinho que dava pena do tanto que pegavam ele para Cristo. De todas as piadas, 10% eram baseadas em fatos e 90% eram a mais pura e genuína criatividade daquelas cabecinhas que ainda não tinham que se preocupar com boletos, casa e trabalho. Ah, a doce juventude!

Nas férias de inverno de 2002, a expectativa era enorme. Ano de Copa do Mundo. O Brasil era um dos favoritos, a gente lembrava bem do Tetra e do Galvão gritando "Tafareeeeeeeel" em 94 e aquela final de 98 ainda dava azia só de relembrar. Lá em 2002, a Copa ainda era mágica para a gente, o Brasil ainda tinha força na afirmação "país do futebol" e os rituais pré-copa eram parte da cultura da ZL. E da nossa casa a gente cuidava bem.

Juntamos todos os vizinhos e criamos um plano de ação para decorar a rua, sem nem saber o que plano de ação significava. Precisávamos de cal, corante de tinta, sacolas verdes e amarelas para fazer uma cortina de rabiola, e de um desenhista para passar as imagens para o asfalto. Criança quando quer uma coisa, se vira nos 30 com sua criatividade e desenrola tudo. Quando adultos, perdemos essa habilidade preciosa sem perceber, e isso impacta diretamente na forma como tomamos decisões e impactamos vidas. Mas essa é outra história.

Fomos de casa em casa pedindo dinheiro e quase todos os vizinhos ajudaram com um sorriso no rosto. A velha chata da esquina, é claro, bateu a porta na nossa cara e nós tivemos o cuidado de decorar todos os cantinhos daquela rua exceto o dela, porque vidas em preto e branco não podem descolorir os nossos ideais.

Fechamos as duas pontas da rua com cones de sinalização de trânsito que eu desconhecia a procedência. A vida tem dessas coisas, sabe? Se você não pergunta, não tem como saber se era ilegal ou imoral. Então é melhor deixar pairar o silêncio da dúvida do que buscar a verdade dos pequenos delitos que alguns já cometiam por inclinação, diversão ou ausência de instrução. A realidade que todos os "de quebrada" encaravam desde o berço era que haviam escolhas, e nem todas direcionavam para a salvação.

Eu tinha feito anos de curso de desenho quando era bem pequena e consegui rabiscar os esboços na rua junto com meu vizinho de parede. Os meninos misturaram as tintas e pintamos tudo de branco, verde, azul e um amarelo duvidoso que eu prefiro chamar de tom pastel. A Vivi ficou na nossa garagem recortando as sacolas e montando metros e metros de rabiola com o Tomate para cobrirmos todo o teto do nosso quarteirão. Nas beiradas da calçada fizemos o mosaico pós-modernista clássico de um bloco verde - um bloco azul - um bloco amarelo.

Ao final de dois dias, estávamos prontos para torcer para o nosso país no maior evento esportivo do mundo. A gente nem entendia a grandeza das coisas naquela época, mas a gente entendia bem que estávamos de férias, que ficaríamos juntos aglomerados na casa de alguém com a tv ligada, e que ia rolar o open de pipoca com guaraná. A gente também tinha consciência de que o misto de Copa + Festa Junina + Férias Escolares aos 16 anos era uma soma de sucesso, e isso nos deixou ansiosos e prontos para o melhor.

E o melhor veio, é claro. Aos primeiros jogos assistimos separados, cada um em sua casa. A cada gol, o chão tremia, as bandeiras nas janelas se sacudiam, as biribinhas explodiam, as cornetas ensurdeciam a velha chata e a gente comemorava com o coração. Nos intervalos, rolava uma Mesa Redonda na calçada de casa, pincelando os melhores momentos antes de voltar para o segundo tempo. Ao final de cada jogo, eu e meu irmão saíamos de casa desviando do "que horas vocês pensam em voltar" ou "onde vocês pensam que vão" da minha mãe. Ela até tentava impedir a gente de sair, mas não funcionava muito. Quando ela escondia a chave, a gente pulava o muro e partia para os abraços e para as quermesses da vila com a desculpa de que "íamos comemorar a vitória do Brasil".

As escolas e igrejas da região tiveram a sabedoria de colocar suas quermesses e festas juninas sempre após os jogos, ou seja, a gente sempre tinha um rolê para fazer. Junho e julho de 2002 ganharam um marco na minha cronologia pessoal: foi a primeira vez que fiquei bêbada na vida, misturando vinho quente com Sangue de Boi que algum maior de 18 comprou depois da gente se entupir de cachorro cachorro-quente na barraquinha da igreja do bairro vizinho.

O Brasil foi passando de fase e um sentimento foi preenchendo cada um de nós. A gente respirava aquela Copa do Mundo. Nos dias sem jogo, pipas com a bandeira brasileira pintavam o céu azul do inverno seco de São Paulo. Eu e a Vivi aprendemos a empinar, a fazer cerol e a ajudar os meninos no que precisassem. Aquela coisa de se vestir de rosa e falar sobre garotos o dia inteiro não era muito a nossa cara. A gente falava, é claro, mas a gente curtia mesmo era a vibe da molecada, sempre sarristas, sempre leves. Eu voltava para casa toda noite com as mãos sujas e meu irmão encobrindo minhas "artes de menino" para os meus pais.

Eu gostava de ser aquela menina que só tinha amigo homem e que tinha férias intensas e de chorar de rir. Eu estudava em uma escola particular que parecia um desfile de modas, eu não me encaixava lá, com aquelas pessoas. Lembro que voltava das férias contando sobre dor de barriga de tanto comer amora do pé e noites de competição para ver quem comia mais esfiha, e tudo que aquelas meninas tinham para compartilhar comigo eram passeios no shopping, compras e namoros. Elas não eram a minha tribo.

No dia da final da Copa, o país parou. Era um domingo de muito sol. Coloquei a camiseta falsa do Brasil no corpo e ouvi a campainha tocar. Era o Tomate:

- Carol, fecharam a avenida. Quando acabar o jogo vamos todos lá para cima comemorar o Penta. Avisa seu irmão.

Opa! Festa pleno meio-dia, e minha mãe querendo ir almoçar na minha avó e cortar o nosso barato.

Assistimos ao jogo na sala eu, minha mãe, meu pai e meu irmão. Meu pai gritava sozinho, seu rosto ficava vermelho. Minha mãe ia e vinha da cozinha, fugindo nos grandes lances. Ela estava mais nervosa que ele. Eu roía todas as unhas da mão e mal piscava. Meu irmão, pleno, acompanhava tudo sem se mover no sofá, em silêncio. A seleção Felipão com Ronaldo Fenômeno, Ronaldinho Gaúcho, Rivaldo, Roberto Carlos, Cafu, goleiro Marcos e tantos outros jogadores eternizou um 2x0 contra a Alemanha e, naquele 30 de junho, trouxe a taça para casa.

Dentro da minha casa, pulos e pulos de alegria. Fora da minha casa, uma energia de felicidade plena e zero problemas que o brasileiro não sentia nunca, acostumado a acordar e matar um leão por dia no país da desigualdade. Naquele domingo, éramos todos iguais. Éramos todos brasileiros beijando o coração da camisa. Éramos patriotas. Éramos várias coisas que não somos, e que deveríamos ser, mas que fomos naquele dia.

Eu e meu irmão fugimos para a avenida, na esperança de que minha mãe fosse para o almoço e esquecesse a gente na festa do bairro. Sonhamos sonhos impossíveis, e esse era um deles. Quando subimos, encontramos nossos amigos bem na frente do posto de gasolina com um cooler de bebidas nos pés. Do lado deles, o príncipe da rua de trás curtia a festa sem camisa. Esse Pentacampeonato era uma benção! Encontramos os vizinhos e, quando olhamos para o lado, o Tomate estava em cima do muro girando a camiseta na mão. De um lado, a utopia do vizinho gato, do outro, a realidade do amigo muito louco. A vida e seu equilíbrio.

Abri uma latinha de cerveja e procurei a Vivi com o olhar no meio da multidão. Não a encontrei e, no fundo, sabia da improbabilidade da mãe dela deixar minha amiga se meter num enrosco daqueles. Dei um gole naquele líquido horrível pela primeira vez na vida e me perguntei como uma porcaria daquelas podia ser tão popular. Dez anos depois, encontrei essa resposta em duas palavras bem combinadas: custo-benefício.

Dei o segundo gole, mas ele não desceu bem. Nem foi pelo gosto. No meio do caos, minha mãe apareceu com o radar dela e um olhar fatal quando viu eu e meu irmão bebendo cerveja. Nem do Tomate em cima do muro ela riu, estava brava mesmo. Puxou nós dois pela orelha e gritou uma maldição aos quatro ventos, dizendo que estaríamos de castigo por todo o resto do mês.

De orelhas quentes, fomos almoçar na minha vó. A feijoada estava boa, a couve perfeita, o abraço da vovó melhor ainda. Minha mãe contou o que tínhamos feito e, em sua sabedoria, Dona Lourdes pediu para minha mãe relevar os pequenos deslizes da adolescência, ainda mais em um dia icônico como uma vitória de Copa de Mundo. Minha mãe ouviu seus conselhos e não deixou a gente na prisão domiciliar que ela tinha planejado implantar naquele inverno.

Naquele julho, a Vivi se apaixonou, as pipas dançaram no céu, o pessoal da minha rua fez amizade com o pessoal da rua de baixo e criamos um grupão que ia para matinês em mais de 15 pessoas, o Playcenter fez um pacote de férias que permitiu que a gente fosse lá passar vergonha na fila toda semana, as quermesses se prolongaram com suas barraquinhas, Titãs estourou nas paradas com "Epitáfio", o Tomate continuou sendo avacalhado nos comentários e o príncipe da rua de trás me notou.

Eu e meu irmão passamos as férias inteirinhas sem hora para voltar para casa. A gente já acordava feliz, sem planos e com um dia inteiro para ser preenchido de bons momentos a nossa espera. A minha mãe tentou todos os dias nos impedir de voar, mas ela não tinha resposta para o nosso melhor argumento:

- Mãe, fica tranquila, a gente só está comemorando o Penta.

Obrigada, seleção brasileira, pelas melhores férias da minha vida. E obrigada, Titãs, por conduzir musicalmente as lições daquele ano mágico. "Devia ter me importado menos, com problemas pequenos..."

CAROL BORTOLO nasceu em São Paulo e desde que aprendeu a ler e escrever, se apaixonou. Já foi bartender nas noites de São Paulo, já trabalhou em navio no Mar Mediterrâneo, já morou em Jericoaocoara, já foi guia turística para o Canadá, já organizou festas nos EUA, já sentiu o frio da Irlanda, já se perdeu vendo os cenotes no México e, atualmente, come pastéis de nata em Portugal. Ela virou o mundo do avesso para descobrir o óbvio: o que ela ama mesmo é contar boas histórias. Participa do Curso Online de Formação de Escritores.

 

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